sexta-feira, 8 de junho de 2007



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A LEI PENAL É UM SISTEMA FECHADO

(Despacho em processo)





Proc. Nº 24603-A
Irineu Gomes Pereira



Segundo o contido nos autos, Irene Porto Ferreira adquiriu em Manaus (AM) um motor de popa de fabricação estrangeira, tendo de lá saído com o mesmo – “sem o pagamento dos tributos devidos, e, portanto, sem autorização das autoridades competentes” (fls. 9) – levando-o para Itaituba (PA), sendo ali por ela entregue ao Recorrido, que o instalou em uma pequena embarcação de sua propriedade (“voadeira”), na qual foi assim encontrado por Agentes de Polícia Federal, que o retiraram e o apreenderam.
Com base em tais fatos, o ilustre representante do Ministério Público ofereceu denúncia contra ambos, irrogando à primeira a prática de crime tipificado no art. 39 do Dec. Lei nº 288, de 28/2/67 c/c alínea b do § 1º do art. 334 do Código Penal, e atribuindo ao segundo (ora Recorrido) a de ilícito previsto na alínea d do prefalado dispositivo da lei penal substantiva, em relação a quem afirmou que “passou a utilizá-lo no transporte de pessoas e coisas, na travessia Itaituba/Miritituba, utilizando, portanto, no exercício de atividade comercial, mercadoria de procedência estrangeira que sabia ser produto de clandestina introdução no território paraense, retirada que foi da Zona Franca de Manaus, o que corresponde a introdução clandestina no território nacional”.
Realmente, o fato imputado a Irene Porto Ferreira caracteriza, em tese, o crime pelo qual foi ela denunciada, daí porque a promoção veio a ser recebida.
No que diz respeito a Irineu Gomes Ferreira, porém, a denúncia não tinha condição para também o ser, motivo pelo qual a rejeitei quanto ao mesmo, com o que se não conformou o custos legis, que através do presente recurso parcial visa à reforma da correspondente decisão, sobre cujas razões ora passo a tecer as presentes considerações.
Data venia, estou em que o parquet incorreu em manifesto equívoco, ao imputar ao Recorrido a acusação da prática de crime (pela circunstância de utilizar ele o motor de popa) à afirmação de que “sabia ser produto de clandestina introdução no território paraense, retirada que foi da Zona Franca de Manaus, o que corresponde a introdução clandestina no território nacional, e, assim, quem utiliza mercadoria naquelas condições, no exercício de atividade comercial, pratica o crime previsto no art. 334, § 1º, d, do Código Penal” (fls. 5).
Em primeiro lugar, o crime tipificado no art. 39 do Dec. Lei nº 288, de 28/2/67, - à parte a defeituosa redação de que ‘Será considerado contrabando ...” – não tem a ver com “introdução clandestina”, etc, porquanto inclusive a isso não aludiu, como ao revés o fez a alínea d do § 1º do art. 334 do estatuto penal.
Em segundo lugar, urge ser rechaçado o generalizado e errôneo entendimento de que a ZFM é considerada território estrangeiro, mais precisamente para que se tenha como mercadoria procedente de outro país, incondicionalmente, toda a que dali seja proveniente. Certo é que tal porção do solo pátrio, por mera ficção, tem extraterritorialidade em relação ao resto do Brasil. Mas essa extraterritorialidade é apenas para efeitos fiscais, e não para fins penais. Quando o correlato dispositivo se refere a importação, tem-se como pressuposto a entrada de mercadoria, no Brasil, vinda do Exterior propriamente dito, não da área do nosso rincão equiparado (somente para efeitos fiscais) a território estrangeiro. Com efeito, as disposições de direito penal são interpretadas restritamente, por isso que não há crime que não corresponda a uma figura típica. No dizer de NELSON HUNGRIA, “A lei penal é, assim, um sistema fechado: ainda que se apresente omissa ou lacunosa, não pode ser suprida pelo arbítrio judicial, ou pelos “princípios gerais do direito”, ou pelo costume” (in Comentários ao Código Penal, Forense, 3ª ed, 1955, Vol. I, Tomo I, nº 1, pág. 11). Daí doutrinar o magistral CARLOS MAXIMILIANO que “Não se permite estendê-la, por analogia ou paridade, para qualificar faltas reprimíveis, ou lhes aplicar penas; não se conclui, por indução, de uma espécie criminal estabelecida para outra não expressa, embora ao juiz pareça ocorrer na segunda hipótese a mesma razão de punir verificada na primeira” (in Hermenêutica e Aplicação do Direito, Freitas Bastos, 6ª ed, 1957, nº 387, pág. 397). E arremata: “estritamente se interpretam as disposições que restringem a liberdade humana, ou afetam a propriedade” (idem, pág. 399).
A seu turno, JOSÉ FREDERICO MARQUES pontifica: “Quando um fato da vida cotidiana apresenta certos aspectos que parecem torná-lo subsumível em um tipo legal,mas que devidamente analisado se mostra não enquadrável na descrição da figura legal, diz-se que há atipicidade específica”(in Tratado de Direito Penal, Saraiva, 2ª ed, 1965, Vol. II, § 63, nº 3, pág. 79).
Assim, sabendo-se que “em direito penal não se pode fazer interpretação extensiva ou aplicação analógica” (ac. De 160680, da 1ª Turma do antigo TFR, no HC nº 4.739-CE, Min. Washington Bolívar de Brito, in DJU de 181280, pág. 10838), e tendo em vista que, se a norma legal incriminadora não previu expressamente a equiparação da extraterritorialidade fiscal à extraterritorialidade penal (e nem possibilitou que tal fosse inferido), - excluída, portanto, a consideração de que minus dixit quam voluit, - claro está que o intérprete não pode fazê-lo, relevante a circunstância de que, se dúvida houvesse,seria de toda conveniência o acatamento à regra do odiosa restringenda, favorabilia amplianda.
Quanto à preocupação do Recorrente, de que “a decisão recorrida constitui um perigoso precedente, pois de acordo com a linha seguida pelo ... juízo a quo, toda mercadoria retirada da Zona Franca de Manaus poderá ser comercializada em outros pontos do território nacional, sem que isso constitua crime” (fls. 5/6), tenha-se em conta que sobre o assunto já se manifestou o E. Tribunal Federal de Recursos, como se pode ver, verbi gratia, noHC nº 4.825-DF, in DJU de 271180/10050, e in EJTFR 17/25) e igualmente em casos análogos o fez o próprio dominus litis, inclusive no Processonº 27782.
Na verdade, - e apesar de haver afirmado que o Recorrido “sabia ser produto de introdução clandestina” (alínea c do § 1º do art.334 do CP, - tem-se que o fiscal da lei o denunciou como incurso nos termos da alínea d, à consideração de que o mesmo “passou a utilizá-lo no transporte de pessoas e coisas, na travessia Itaituba/Miritituba, utilizandoooo, portanto, no exercício de artividade comercial, mercadoria de procedência estrangeira ....”. Mas, ainda que assim seja, a denúncia contra o Recorrido não poderia realmente ser recebida, porque o correspondente crime só se configura, a par da concorrência dos demais elementos, se atuar o agente “no exercício de atividade comercial ou industrial”, e in hoc specie a instalação do motor de popa em uma pequena embarcação não caracteriza o alegado “exercício de atividade comercial” (fls. 9). É que, ao se referir àquela circunstância, teve em mira o legislador apenas o destino a ser dado à mercadoria, ou seja, a sua venda ou o seu emprego com fins industriais. Tanto é verdade que o sentido daquela expressão diz respeito à destinação, que a jurisprudência tem admitido essa ocorrência mesmo quando não se tenha positivado aquela circunstância, bastando que a quantidade de mercadoria denote a finalidade comercial, como exempli gratia expendido na seguinte ementa: !Contrabando. O fato de ocultar mercadoria estrangeira, em quantidade denotadora de sua destinação comercial, concretiza o crime de contrabando” (ac. Do TFR,na A.Crim. nº 1.427-PA, Rel. Min. Moacir Catunda, decisão unânime, in DJU 030270/247). E este outro aresto é ainda mais incisivo: “Para sua configuração, necessário que as mercadorias sejam destinadas ao comércio! (ac. De 040974, da 3ª Turma do TFR, na Ap.Crim. nº 2.279-MT, Rel. Min. Rondon Magalhães, in DJU 051175/8149). E, neste passo, vem bem a pelo este ensinamento do emérito NELSON HUNGRIA: “Exercício de atividade comercial não quer dizer senão exercício profissional do comércio, por conta própria ou de outrem” (in Comentários ao Código Penal,Forense, 2ª ed, 1958, Vol. VII, nº 99, pág. 273).
In casu, o motor estava devidamente instalado na embarcação de propriedade do Recorrido, e, assim, era empregado em uso próprio, não se destinando a revenda.
Diante de todo o exposto, tem-se que a denúncia oferecida contra Irineu Gomes Ferreira realmente não poderia ser recebida, pelo que ora mantenho a decisão recorrida.
Intime-se.
Belém, 031187










Segue...














Algum tempo depois reconsiderei o entendimento de que o “exercício de atividade comercial ou industrial” poderia ser simplesmente deduzido, porque cheguei à conclusão de que, no caso,o tal exercício haveria de ser efetivo, e não deduzido, conforme se vê pelo contido no seguinte trecho:



















No exercício de atividade comercial ou industrial
TRF – 3 ª Turma
Ap. Crim. Nº 93.01.19631-0/MG

“........2. Os ilícitos previstos nas alíneas c e d do § 1º do art.
334 do Código Penal só se caracterizam com o efetivo exer
cício de atividade comercial ou industrial, não sendo sufici
ente a intenção ou a dedução de que aquela atividade possa
vir a ocorrer futuramente, pois a destinação não constitui ele
mento do tipo”

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.......De outra sorte, nem seria o caso de desclassificar (como autorizado pelo art. 383 do CPP) para alguma das figuras previstas nas alíneas c e d do § 1º do mencionado art. 334 do Cód. Penal, porque em todas elas há o pressuposto de que o crime só existirá quando a pessoa age – como lá expressado – “no exercício de atividade comercial ou industrial”, e em tal circunstância não se encontrava a apelante quando foi abordada pelos policiais, e nem o fizera anteriormente, pouco importando que se tenha dito ser a intenção dela posteriormente comerciar as mercadorias apreendidas, em primeiro lugar porque a simples intenção (cogitatio) não é suficiente para justificar penalização (pensero non paga gabello, como dizem os italianos) e, em segundo lugar, porque apenas se a apelante viesse a efetivamente empregar as mercadorias em atividade comercial ou industrial, e somente quando o fizesse, é que se caracterizaria algum dos crimes previstos nas referidas alíneas, e tudo isso até porque, falando os dispositivos em “no exercício de atividade comercial ....” (tempo presente0, e não em “para exercício ...(futuro), é de ser rechaçada qualquer consideração, como equivocadamente tem sido amiúde afirmada,a punição pelo fato da “destinação”, haja vista que não é isso o que está previsto na figura penal, de todo abominável na espécie o emprego da analogia ou a interpretação extensiva contra o réu.


Brasília/DF, 25/10/93

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