quinta-feira, 19 de julho de 2007

A SENTENÇA DE TIRADENTES




A SENTENÇA DE TIRADENTES



“...Portanto, condemnam ao réu Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha o Tiradentes, Alferes que foi da tropa paga da Capitania de Minas, a que com baraço e pregão seja conduzido pelas ruas públicas ao lugar da forca e nella morra morte natural para sempre e depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Villa Rica aonde em o lugar mais publico della será pregada, em um poste alto até que o tempo a consuma, e o seu corpo será dividido em quatro quartos, e pregados em postes, pelo caminho de Minas, no sítio da Varginha e das Cebolas, aonde o réu teve as suas infames práticas, e os mais nos sítios de maiores povoações, até que o tempo também os consuma: declaram o réu infame, e seus filhos e netos tendo-os, e os seus bens applicam para o Fisco e a Câmara Real, e a casa em que vivia em Villa Rica será arrasada e salgada, para que nunca mais no chão edifique, e não sendo própria será avaliada e paga a seu dono pelos bens confiscados, e no mesmo chão se levantará um padrão, pelo qual se conserve na memória a infâmia deste abominável réu”.
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(Parte final da sentença que condenou JOAQUIM JOSÉ DA SILVA XAVIER, o Tiradentes, in “Casos Criminais Célebres, René Ariel Dotti, ERT, 2ª ed. 1999, pág. 25; in “Brasil, 500 anos em Documentos, Ivan Alves Filho, Ed. Mauad, pág. 134)

A CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA


O Descobrimento - Carta ao Rei Dom Manuel
Pero Vaz de Caminha
Senhor,
Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que ora nesta navegação se achou, não deixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que -- para o bem contar e falar -- o saiba pior que todos fazer.
Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa vontade, e creia bem por certo que, para aformosear nem afear, não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu.
Da marinhagem e singraduras do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza, porque o não saberei fazer, e os pilotos devem ter esse cuidado. Portanto, Senhor, do que hei de falar começo e digo:
A partida de Belém, como Vossa Alteza sabe, foi segunda-feira, 9 de março. Sábado, 14 do dito mês, entre as oito e nove horas, nos achamos entre as Canárias, mais perto da Grã- Canária, e ali andamos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três a quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês, às dez horas, pouco mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, ou melhor, da ilha de S. Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar, piloto.
Na noite seguinte, segunda-feira, ao amanhecer, se perdeu da frota Vasco de Ataíde com sua nau, sem haver tempo forte nem contrário para que tal acontecesse. Fez o capitão suas diligências para o achar, a uma e outra parte, mas não apareceu mais!
E assim seguimos nosso caminho, por este mar, de longo, até que, terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, estando da dita Ilha obra de 660 ou 670 léguas, segundo os pilotos diziam, topamos alguns sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, assim como outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam fura-buxos.
Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome - o Monte Pascoal e à terra - a Terra da Vera Cruz.
Mandou lançar o prumo. Acharam vinte e cinco braças; e ao sol posto, obra de seis léguas da terra, surgimos âncoras, em dezenove braças -- ancoragem limpa. Ali permanecemos toda aquela noite. E à quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimosem direitos à terra, indo os navios pequenos diante, por dezessete, dezesseis, quinze, catorze, treze, doze, dez e nove braças, até meia légua da terra, onde todos lançamos âncoras em frente à boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas pouco mais ou menos.
Dali avistamos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro.
Então lançamos fora os batéis e esquifes, e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do Capitão-mor, onde falaram entre si. E o Capitão-mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou de ir para lá, acudiram pela praia homens, quando aos dois, quando aos três, de maneira que, ao chegar o batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte homens.
Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram.
Ali não pôde deles haver fala, nem entendimento de proveito, por o mar quebrar na costa. Somente deu-lhes um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto. Um deles deu-lhe um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas como de papagaio; e outro deu-lhe um ramal grande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer de aljaveira, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza, e com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar.
Na noite seguinte, ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez caçar as naus, e especialmente a capitânia. E sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o Capitão levantar âncoras e fazer vela; e fomos ao longo da costa, com os batéis e esquifes amarrados à popa na direção do norte, para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde nos demorássemos, para tomar água e lenha. Não que nos minguasse, mas por aqui nos acertarmos.
Quando fizemos vela, estariam já na praia assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam juntado ali poucos e poucos. Fomos de longo, e mandou o Capitão aos navios pequenos que seguissem mais chegados à terra e, se achassem pouso seguro para as naus, que amainassem.
E, velejando nós pela costa, obra de dez léguas do sítio donde tínhamos levantado ferro, acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram. As naus arribaram sobre eles; e um pouco antes do sol posto amainaram também, obra de uma légua do recife, e ancoraram em onze braças.
E estando Afonso Lopes, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, por mandado do Capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o porto dentro; e tomou dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos, que estavam numa almadia. Um deles trazia um arco e seis ou sete setas; e na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas de nada lhes serviram. Trouxe-os logo, já de noite, ao Capitão, em cuja nau foram recebidos com muito prazer e festa.
A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber.
Os cabelos seus são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobrepente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda como cera (mas não o era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.
O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço, e aos pés uma alcatifa por estrado. Sancho de Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia, e nós outros que aqui na nau com ele vamos, sentados no chão, pela alcatifa. Acenderam-se tochas. Entraram. Mas não fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao Capitão nem a ninguém. Porém um deles pôs olho no colar do Capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro. Também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal como se lá também houvesse prata.
Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como quem diz que os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram caso. Mostraram-lhes uma galinha, quase tiveram medo dela: não lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram como que espantados.
Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa provaram, logo a lançaram fora. Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem quiseram mais. Trouxeram-lhes a água em uma albarrada. Não beberam. Mal a tomaram na boca, que lavaram, e logo a lançaram fora.
Viu um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhas dessem, folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas e para o colar do Capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo.
Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não o queríamos nós entender, porque não lho havíamos de dar. E depois tornou as contas a quem lhas dera.
Então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de cobrirem suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O Capitão lhes mandou pôr por baixo das cabeças seus coxins; e o da cabeleira esforçava-se por não a quebrar. E lançaram-lhes um manto por cima; e eles consentiram, quedaram-se e dormiram.
Ao sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela, e fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e alta de seis a sete braças. Entraram todas as naus dentro; e ancoraram em cinco ou seis braças - ancoragem dentro tão grande, tão formosa e tão segura, que podem abrigar-se nela mais de duzentos navios e naus. E tanto que as naus quedaram ancoradas, todos os capitães vieram a esta nau do Capitão-mor. E daqui mandou o Capitão a Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles dois homens e os deixassem ir com seu arco e setas, e isto depois que fez dar a cada um sua camisa nova, sua carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso, que eles levaram nos braços, seus cascavéis e suas campainhas. E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo degredado, criado de D. João Telo, a que chamam Afonso Ribeiro, para lá andar com eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho.
Fomos assim de frecha direitos à praia. Ali acudiram logo obra de duzentos homens, todos nus, e com arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós levávamos acenaram-lhes que se afastassem e pousassem os arcos; e eles os pousaram, mas não se afastaram muito. E mal pousaram os arcos, logo saíram os que nós levávamos, e o mancebo degredado com eles. E saídos não pararam mais; nem esperavam um pelo outro, mas antes corriam a quem mais corria. E passaram um rio que por ali corre, de água doce, de muita água que lhes dava pela braga; e outros muitos com eles. E foram assim correndo, além do rio, entre umas moitas de palmas onde estavam outros. Ali pararam. Entretanto foi-se o degredado com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e o levou até lá. Mas logo tornaram a nós; e com ele vieram os outros que nós leváramos, os quais vinham já nus e sem carapuças.
Então se começaram de chegar muitos. Entravam pela beira do mar para os batéis, até que mais não podiam; traziam cabaços de água, e tomavam alguns barris que nós levávamos: enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis. Não que eles de todos chegassem à borda do batel. Mas junto a ele, lançavam os barris que nós tomávamos; e pediam que lhes dessem alguma coisa. Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas. E a uns dava um cascavel, a outros uma manilha, de maneira que com aquele engodo quase nos queriam dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que homem lhes queria dar.
Dali se partiram os outros dois mancebos, que os não vimos mais.
Muitos deles ou quase a maior parte dos que andavam ali traziam aqueles bicos de osso nos beiços. E alguns, que andavam sem eles, tinham os beiços furados e nos buracos uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha; outros traziam três daqueles bicos, a saber, um no meio e os dois nos cabos. Aí andavam outros, quartejados de cores, a saber, metade deles da sua própria cor, e metade de tintura preta, a modos de azulada; e outros quartejados de escaques. Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.
Ali por então não houve mais fala ou entendimento com eles, por a barbaria deles ser tamanha, que se não entendia nem ouvia ninguém.
Acenamos-lhes que se fossem; assim o fizeram e passaram-se além do rio. Saíram três ou quatro homens nossos dos batéis, e encheram não sei quantos barris de água que nós levávamos e tornamo-nos às naus. Mas quando assim vínhamos, acenaram-nos que tornássemos. Tornamos e eles mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá com eles. Este levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para lá as dar ao senhor, se o lá houvesse. Não cuidaram de lhe tomar nada, antes o mandaram com tudo. Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, ordenando que lhes desse aquilo. E ele tornou e o deu , à vista de nós, àquele que da primeira vez agasalhara. Logo voltou e nós trouxemo-lo.
Esse que o agasalhou era já de idade, e andava por louçainha todo cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia asseteado como S. Sebastião. Outros traziam carapuças de penas amarelas; outros, de vermelhas; e outros de verdes. E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela. Nenhum deles era fanado, mas, todos assim como nós. E com isto nos tornamos e eles foram-se. À tarde saiu o Capitão-mor em seu batel com todos nós outros e com os outros capitães das naus em seus batéis a folgar pela baía, em frente da praia. Mas ninguém saiu em terra, porque o Capitão o não quis, sem embargo de ninguém nela estar. Somente saiu -- ele com todos nós -- em um ilhéu grande, que na baía está e que na baixa-mar fica mui vazio. Porém é por toda a parte cercado de água, de sorte que ninguém lá pode ir, a não ser de barco ou a nado. Ali folgou ele e todos nós outros, bem uma hora e meia. E alguns marinheiros, que ali andavam com um chinchorro, pescaram peixe miúdo, não muito. Então volvemo-nos às naus, já bem de noite.
Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão de ir ouvir missa e pregação naquele ilhéu. Mandou a todos os capitães que se aprestassem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou naquele ilhéu armar um esperavel, e dentro dele um altar mui bem corregido. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual foi dita pelo padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes, que todos eram ali. A qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção.
Ali era com o Capitão a bandeira de Cristo, com que saiu de Belém, a qual esteve sempre levantada, da parte do Evangelho.
Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação da história do Evangelho, ao fim da qual tratou da nossa vinda e do achamento desta terra, conformando-se com o sinal da Cruz, sob cuja obediência viemos, o que foi muito a propósito e fez muita devoção. Enquanto estivemos à missa e à pregação, seria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos como a de ontem, com seus arcos e setas, a qual andava folgando. E olhando-nos, sentaram-se. E, depois de acabada a missa, assentados nós à pregação, levantaram-se muitos deles, tangeram corno ou buzina, e começaram a saltar e dançar um pedaço. E alguns deles se metiam em almadias -- duas ou três que aí tinham -- as quais não são feitas como as que eu já vi; somente são três traves, atadas entre si. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam não se afastando quase nada da terra, senão enquanto podiam tomar pé.
Acabada a pregação, voltou o Capitão, com todos nós, para os batéis, com nossa bandeira alta. Embarcamos e fomos todos em direção à terra para passarmos ao longo por onde eles estavam, indo, na dianteira, por ordem do Capitão, Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau de uma almadia que lhes o mar levara, para lho dar; e nós todos, obra de tiro de pedra, atrás dele.
Como viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água, metendo-se nela até onde mais podiam.
Acenaram-lhes que pousassem os arcos; e muitos deles os iam logo pôr em terra; e outros não.
Andava aí um que falava muito aos outros que se afastassem, mas não que a mim me parecesse que lhe tinham acatamento ou medo. Este que os assim andava afastando trazia seu arco e setas, e andava tinto de tintura vermelha pelos peitos, espáduas, quadris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria cor. E a tintura era assim vermelha que a água a não comia nem desfazia, antes, quando saía da água, parecia mais vermelha.
Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias e andava entre eles, sem implicarem nada com ele para fazer-lhe mal. Antes lhe davam cabaças de água, e acenavam aos do esquife que saíssem em terra.
Com isto se volveu Bartolomeu Dias ao Capitão; e viemo-nos às naus, a comer, tangendo gaitas e trombetas, sem lhes dar mais opressão. E eles tornaram-se a assentar na praia e assim por então ficaram.
Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e pregação, a água espraia muito, deixando muita areia e muito cascalho a descoberto. Enquanto aí estávamos, foram alguns buscar marisco e apenas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um tão grande e tão grosso, como em nenhum tempo vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões e amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira.
E tanto que comemos, vieram logo todos os capitães a esta nau, por ordem do Capitão-mor, com os quais ele se apartou, e eu na companhia. E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para a melhor a mandar descobrir e saber dela mais do que nós agora podíamos saber, por irmos de nossa viagem.
E entre muitas falas que no caso se fizeram, foi por todos ou a maior parte dito que seria muito bem. E nisto concluíram. E tanto que a conclusão foi tomada, perguntou mais se lhes parecia bem tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui por eles outros dois destes degredados.
Sobre isto acordaram que não era necessário tomar por força homens, porque era geral costume dos que assim levavam por força para alguma parte dizerem que há ali de tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor informação da terra dariam dois homens destes degredados que aqui deixassem, do que eles dariam se os levassem, por ser gente que ninguém entende. Nem eles tão cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam, quando Vossa Alteza cá mandar. E que, portanto, não cuidassem de aqui tomar ninguém por força nem de fazer escândalo, para de todo mais os amansar e apacificar, senão somente deixar aqui os dois degredados, quando daqui partíssemos.
E assim, por melhor a todos parecer, ficou determinado. Acabado isto, disse o Capitão que fôssemos nos batéis em terra e ver-se-ia bem como era o rio, e também para folgarmos.
Fomos todos nos batéis em terra, armados e a bandeira conosco. Eles andavam ali na praia, à boca do rio, para onde nós íamos; e, antes que chegássemos, pelo ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos, e acenavam que saíssemos. Mas, tanto que os batéis puseram as proas em terra, passaram-se logo todos além do rio, o qual não é mais largo que um jogo de mancal. E mal desembarcamos, alguns dos nossos passaram logo o rio, e meteram-se entre eles. Alguns aguardavam; outros afastavam-se. Era, porém, a coisa de maneira que todos andavam misturados. Eles ofereciam desses arcos com suas setas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que lhes davam.
Passaram além tantos dos nossos, e andavam assim misturados com eles, que eles se esquivavam e afastavam-se. E deles alguns iam-se para cima onde outros estavam.
Então o Capitão fez que dois homens o tomassem ao colo, passou o rio, e fez tornar a todos. A gente que ali estava não seria mais que a costumada. E tanto que o Capitão fez tornar a todos, vieram a ele alguns daqueles, não porque o conhecessem por Senhor, pois me parece que não entendem, nem tomavam disso conhecimento, mas porque a gente nossa passava já para aquém do rio.
Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas daquelas já ditas, e resgatavam-nas por qualquer coisa, em tal maneira que os nossos trouxeram dali para as naus muitos arcos e setas e contas.
Então tornou-se o Capitão aquém do rio, e logo acudiram muitos à beira dele. Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim nos corpos, como nas pernas, que, certo, pareciam bem assim.
Também andavam, entre eles, quatro ou cinco mulheres moças, nuas como eles, que não pareciam mal. Entre elas andava uma com uma coxa, do joelho até o quadril, e a nádega, toda tinta daquela tintura preta; e o resto, tudo da sua própria cor. Outra trazia ambos os joelhos, com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas, que nisso não havia nenhuma vergonha.
Também andava aí outra mulher moça com um menino ou menina ao colo, atado com um pano (não sei de quê) aos peitos, de modo que apenas as perninhas lhe apareciam. Mas as pernas da mãe e o resto não traziam pano algum.
Depois andou o Capitão para cima ao longo do rio, que corre sempre chegado à praia. Ali esperou um velho, que trazia na mão uma pá de almadia. Falava, enquanto o Capitão esteve com ele, perante nós todos, sem nunca ninguém o entender, nem ele a nós quantas coisas que lhe demandávamos acerca de ouro, que nós desejávamos saber se na terra havia.
Trazia este velho o beiço tão furado, que lhe caberia pelo furo um grande dedo polegar, e metida nele uma pedra verde, ruim, que cerrava por fora esse buraco. O Capitão lha fez tirar. E ele não sei que diabo falava e ia com ela direito ao Capitão, para lha meter na boca. Estivemos sobre isso rindo um pouco; e então enfadou-se o Capitão e deixou-o. E um dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho, não por ela valer alguma coisa, mas por amostra. Depois houve-a o Capitão, segundo creio, para, com as outras coisas, a mandar a Vossa Alteza.
Andamos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas, não muito altas, em que há muito bons palmitos. Colhemos e comemos deles muitos.
Então tornou-se o Capitão para baixo para a boca do rio, onde havíamos desembarcado.
Além do rio, andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras, e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo muito os segurou e afagou, tomavam logo uma esquiveza como de animais monteses, e foram-se para cima.
E então o Capitão passou o rio com todos nós outros, e fomos pela praia de longo, indo os batéis, assim, rente da terra. Fomos até uma lagoa grande de água doce, que está junto com a praia, porque toda aquela ribeira do mar é apaulada por cima e sai a água por muitos lugares.
E depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles andar entre os marinheiros que se recolhiam aos batéis. E levaram dali um tubarão, que Bartolomeu Dias matou, lhes levou e lançou na praia.
Bastará dizer-vos que até aqui, como quer que eles um pouco se amansassem, logo duma mão para outra se esquivavam, como pardais, do cevadoiro. Homem não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais; e tudo se passa como eles querem, para os bem amansar.
O Capitão ao velho, com quem falou, deu uma carapuça vermelha. E com toda a fala que entre ambos se passou e com a carapuça que lhe deu, tanto que se apartou e começou de passar o rio, foi-se logo recatando e não quis mais tornar de lá para aquém.
Os outros dois, que o Capitão teve nas naus, a que deu o que já disse, nunca mais aqui apareceram - do que tiro ser gente bestial, de pouco saber e por isso tão esquiva. Porém e com tudo isso andam muito bem curados e muito limpos. E naquilo me parece ainda mais que são como aves ou alimárias monteses, às quais faz o ar melhor pena e melhor cabelo que às mansas, porque os corpos seus são tão limpos, tão gordos e tão formosos, que não pode mais ser.
Isto me faz presumir que não têm casas nem moradas a que se acolham, e o ar, a que se criam, os faz tais. Nem nós ainda até agora vimos nenhuma casa ou maneira delas.
Mandou o Capitão aquele degredado Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez com eles. Ele foi e andou lá um bom pedaço, mas à tarde tornou-se, que o fizeram eles vir e não o quiseram lá consentir. E deram-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram nenhuma coisa do seu. Antes - disse ele - que um lhe tomara umas continhas amarelas, que levava, e fugia com elas, e ele se queixou e os outros foram logo após, e lhas tomaram e tornaram-lhas a dar; e então mandaram-no vir. Disse que não vira lá entre eles senão umas choupaninhas de rama verde e de fetos muito grandes, como de Entre Douro e Minho. E assim nos tornamos às naus, já quase noite, a dormir.
À segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram então muitos, mas não tantos como as outras vezes. Já muito poucos traziam arcos. Estiveram assim um pouco afastados de nós; e depois pouco a pouco misturaram-se conosco. Abraçavam-nos e folgavam. E alguns deles se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha ou por qualquer coisa. Em tal maneira isto se passou, que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles, onde outros muitos estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves, deles verdes e deles amarelos, dos quais, creio, o Capitão há de mandar amostra a Vossa Alteza.
E, segundo diziam esses que lá foram, folgavam com eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais à nossa vontade, por andarmos quase todos misturados. Ali, alguns andavam daquelas tinturas quartejados; outros de metades; outros de tanta feição, como em panos de armar, e todos com os beiços furados, e muitos com os ossos neles, e outros sem ossos.
Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores, que, na cor, queriam parecer de castanheiros, embora mais pequenos. E eram cheios duns grãos vermelhos pequenos, que, esmagando-os entre os dedos, faziam tintura muito vermelha, de que eles andavam tintos. E quanto mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam.
Todos andam rapados até cima das orelhas; e assim as sobrancelhas e pestanas. Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas da tintura preta, que parece uma fita preta, da largura de dois dedos.
E o Capitão mandou aquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados, que fossem lá andar entre eles; e assim a Diogo Dias, por ser homem ledo, com que eles folgavam. Aos degredados mandou que ficassem lá esta noite. Foram-se lá todos, e andaram entre eles. E, segundo eles diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação, em que haveria nove ou dez casas, as quais eram tão compridas, cada uma, como esta nau capitânia. Eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoada altura; todas duma só peça, sem nenhum repartimento, tinham dentro muitos esteios; e, de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma num cabo, e outra no outro.
Diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os achavam; e que lhes davam de comer daquela vianda, que eles tinham, a saber, muito inhame e outras sementes, que na terra há e eles comem. Mas, quando se fez tarde fizeram-nos logo tornar a todos e não quiseram que lá ficasse nenhum. Ainda, segundo diziam, queriam vir com eles.
Resgataram lá por cascavéis e por outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos e carapuças de penas verdes, e um pano de penas de muitas cores, maneira de tecido assaz formoso, segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá, porque o Capitão vo-las há de mandar, segundo ele disse.
E com isto vieram; e nós tornámo-nos às naus.
À terça-feira, depois de comer, fomos em terra dar guarda de lenha e lavar roupa.
Estavam na praia, quando chegamos, obra de sessenta ou setenta sem arcos e sem nada. Tanto que chegamos, vieram logo para nós, sem se esquivarem. Depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos; e misturaram-se todos tanto conosco que alguns nos ajudavam a acarretar lenha e a meter nos batéis. E lutavam com os nossos e tomavam muito prazer.
Enquanto cortávamos a lenha, faziam dois carpinteiros uma grande Cruz, dum pau, que ontem para isso se cortou.
Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais por verem a ferramenta de ferro com que a faziam, do que por verem a Cruz, porque eles não tem coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira que andam fortes, segundo diziam os homens, que ontem a suas casas foram, porque lhas viram lá.
Era já a conversação deles conosco tanta, que quase nos estorvavam no que havíamos de fazer.
O Capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia (e aoutras, se houvessem novas delas) e que, em toda a maneira, não viessem dormir às naus, ainda que eles os mandassem. E assim se foram.
Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios por essas árvores, deles verdes e outros pardos, grandes e pequenos, de maneira que me parece que haverá muitos nesta terra. Porém eu não veria mais que até nove ou dez. Outras aves então não vimos, somente algumas pombas-seixas, e pareceram-me bastante maiores que as de Portugal. Alguns diziam que viram rolas; eu não as vi. Mas, segundo os arvoredos são mui muitos e grandes, e de infindas maneiras, não duvido que por esse sertão haja muitas aves!
Cerca da noite nos volvemos para as naus com nossa lenha.
Eu creio, Senhor, que ainda não dei conta aqui a Vossa Alteza da feição de seus arcos e setas. Os arcos são pretos e compridos, as setas também compridas e os ferros delas de canas aparadas, segundo Vossa Alteza verá por alguns que - eu creio -- o Capitão a Ela há de enviar.
À quarta-feira não fomos em terra, porque o Capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo e fazer levar às naus isso que cada uma podia levar. Eles acudiram à praia; muitos, segundo das naus vimos. No dizer de Sancho de Tovar, que lá foi, seriam obra de trezentos.
Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o Capitão ontem mandou que em toda maneira lá dormissem, volveram-se, já de noite, por eles não quererem que lá ficassem. Trouxeram papagaios verdes e outras aves pretas, quase como pegas, a não ser que tinham o bico branco e os rabos curtos.
Quando Sancho de Tovar se recolheu à nau, queriam vir com ele alguns, mas ele não quis senão dois mancebos dispostos e homens de prol. Mandou-os essa noite mui bem pensar e curar. Comeram toda a vianda que lhes deram; e mandou fazer-lhes cama de lençóis, segundo ele disse. Dormiram e folgaram aquela noite.
E assim não houve mais este dia que para escrever seja.
À quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e água. E, em querendo o Capitão sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus dois hóspedes. E por ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas. Trouxeram-lhe vianda e comeu. Aos hóspedes, sentaram cada um em sua cadeira. E de tudo o que lhes deram comeram mui bem, especialmente lacão cozido, frio, e arroz.
Não lhes deram vinho, por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem.
Acabado o comer, metemo-nos todos no batel e eles conosco. Deu um grumete a um deles uma armadura grande de porco montês, bem revolta. Tanto que a tomou, meteu-a logo no beiço, e, porque se lhe não queria segurar, deram-lhe uma pequena de cera vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço detrás para ficar segura, e meteu-a no beiço, assim revolta para cima. E vinha tão contente com ela, como se tivesse uma grande jóia. E tanto que saímos em terra, foi-se logo com ela, e não apareceu mais aí.
Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir mais. E parece-me que viriam, este dia, à praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta.
Traziam alguns deles arcos e setas, que todos trocaram por carapuças ou por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos. Bebiam alguns deles vinho; outros o não podiam beber. Mas parece-me, que se lho avezarem, o beberão de boa vontade.
Andavam todos tão dispostos, tão bem-feitos e galantes com suas tinturas, que pareciam bem. Acarretavam dessa lenha, quanta podiam, com mui boa vontade, e levavam-na aos batéis. Andavam já mais mansos e seguros entre nós, do que nós andávamos entre eles.
Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por este arvoredo até uma ribeira grande e de muita água que, a nosso parecer, era esta mesma, que vem ter à praia, e em que nós tomamos água.
Ali ficamos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo dela, entre esse arvoredo, que é tanto, tamanho, tão basto e de tantas prumagens, que homens as não podem contar. Há entre ele muitas palmas, de que colhemos muitos e bons palmitos.
Quando saímos do batel, disse o Capitão que seria bom irmos direitos à Cruz, que estava encostada a uma árvore, junto com o rio, para se erguer amanhã, que é sexta-feira, e que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. A esses dez ou doze que aí estavam, acenaram-lhe que fizessem assim, e foram logo todos beijá-la.
Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença.
E portanto, se os degredados, que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes quiserem dar. E pois Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa.
Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da sua salvação. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim.
Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios, que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos.
Neste dia, enquanto ali andaram, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som dum tamboril dos nossos, em maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus.
Se lhes homem acenava se queriam vir às naus, faziam-se logo prestes para isso, em tal maneira que, se a gente todos quisera convidar, todos vieram. Porém não trouxemos esta noite às naus, senão quatro ou cinco, a saber: o Capitão-mor, dois; e Simão de Miranda, um, que trazia já por pajem; e Aires Gomes, outro, também por pajem.
Um dos que o Capitão trouxe era um dos hóspedes, que lhe trouxeram da primeira vez, quando aqui chegamos, o qual veio hoje aqui, vestido na sua camisa, e com ele um seu irmão; e foram esta noite mui bem agasalhados, assim de vianda, como de cama, de colchões e lençóis, para os mais amansar.
E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra, com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio contra o sul, onde nos pareceu que seria melhor chantar a Cruz, para melhor ser vista. Ali assinalou o Capitão o lugar, onde fizessem a cova para a chantar.
Enquanto a ficaram fazendo, ele com todos nós outros fomos pela Cruz abaixo do rio, onde ela estava. Dali a trouxemos com esses religiosos e sacerdotes diante cantando, em maneira de procissão.
Eram já aí alguns deles, obra de setenta ou oitenta; e, quando nos viram assim vir, alguns se foram meter debaixo dela, para nos ajudar. Passamos o rio, ao longo da praia e fomo-la pôr onde havia de ficar, que será do rio obra de dois tiros de besta. Andando-se ali nisto, vieram bem cento e cinqüenta ou mais.
Chantada a Cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiramente lhe pregaram, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco a ela obra de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de joelhos, assim como nós.
E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, ficando assim, até ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim todos, como nós estávamos com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados, que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita devoção.
Estiveram assim conosco até acabada a comunhão, depois da qual comungaram esses religiosos e sacerdotes e o Capitão com alguns de nós outros.
Alguns deles, por o sol ser grande, quando estávamos comungando, levantaram-se, e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos, continuou ali com aqueles que ficaram. Esse, estando nós assim, ajuntava estes, que ali ficaram, e ainda chamava outros. E andando assim entre eles falando, lhes acenou com o dedo para o altar e depois apontou o dedo para o Céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos.
Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima e ficou em alva; e assim se subiu junto com altar, em uma cadeira. Ali nos pregou do Evangelho e dos Apóstolos, cujo dia hoje é, tratando, ao fim da pregação, deste vosso prosseguimento tão santo e virtuoso, o que nos aumentou a devoção.
Esses, que à pregação sempre estiveram, quedaram-se como nós olhando para ele. E aquele, que digo, chamava alguns que viessem para ali. Alguns vinham e outros iam-se. E, acabada a pregação, como Nicolau Coelho trouxesse muitas cruzes de estanho com crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda, houveram por bem que se lançasse a cada um a sua ao pescoço. Pelo que o padre frei Henrique se assentou ao pé da Cruz e ali, a um por um, lançava a sua atada em um fio ao pescoço, fazendo-lha primeiro beijar e alevantar as mãos. Vinham a isso muitos; e lançaram-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinqüenta.
Isto acabado - era já bem uma hora depois do meio-dia - viemos às naus a comer, trazendo o Capitão consigo aquele mesmo que fez aos outros aquela mostrança para o altar e para o Céu e um seu irmão com ele. Fez-lhe muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca e ao outro uma camisa destoutras.
E, segundo que a mim e a todos pareceu, esta gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão entender-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer, como nós mesmos, por onde nos pareceu a todos que nenhuma idolatria, nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar, porque já então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados, que aqui entre eles ficam, os quais, ambos, hoje também comungaram.
Entre todos estes que hoje vieram, não veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um pano com que se cobrisse. Puseram-lho a redor de si. Porém, ao assentar, não fazia grande memória de o estender bem, para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal, que a de Adão não seria maior, quanto a vergonha.
Ora veja Vossa Alteza se quem em tal inocência vive se converterá ou não, ensinando-lhes o que pertence à sua salvação.
Acabado isto, fomos assim perante eles beijar a Cruz, despedimo-nos e viemos comer.
Creio, Senhor, que com estes dois degredados ficam mais dois grumetes, que esta noite se saíram desta nau no esquife, fugidos para terra. Não vieram mais. E cremos que ficarão aqui, porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos daqui nossa partida.
Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até à outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa. Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é toda praia parma, muito chã e muito formosa.
Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa.
Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá.
Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.
Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.
E que aí não houvesse mais que ter aqui esta pousada para esta navegação de Calecute, bastaria. Quando mais disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa santa fé.
E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza do que nesta vossa terra vi. E, se algum pouco me alonguei, Ela me perdoe, que o desejo que tinha, de Vos tudo dizer, mo fez assim pôr pelo miúdo.
E pois que, Senhor, é certo que, assim neste cargo que levo, como em outra qualquer coisa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro - o que d'Ela receberei em muita mercê.
Beijo as mãos de Vossa Alteza.
Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.
Pero Vaz de Caminha
Nota INFORMATIVA:
A carta que o escrivão Pero Vaz de Caminha escreveu ao rei d. Manuel é considerada o primeiro documento da nossa história, e também como o primeiro texto literário do Brasil.
Esta crônica do nascimento do Brasil, redigida em forma de diário, vem motivando um volumoso número de estudos e edições, desde quando o padre Manuel Aires de Casal a publicou pela primeira vez na Corografia brazílica. O original desse precioso documento, em sete folhas de papel manuscritas, cada uma em quatro páginas, num total de 27 páginas de texto e mais uma de endereço, encontra-se guardado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, (gaveta 8, maço 2, n.2).
A carta de Caminha caracteriza-se pela descrição da tipicidade humana do indígena. Observou Carlos Malheiro Dias que "Caminha não era um cosmógrafo. O que ele redigiu para recreio e esclarecimento do rei foi uma narrativa impressionista em que revela aquela cultura literária tão própria dos portugueses da sua grande época, e aquela capacidade de observação, e aquela capacidade de compreender e descrever judiciosamente, que constituem o mais esplêndido encanto dos cronistas". A preocupação em traduzir gestos, a caracterização corporal, a sua alimentação e abrigo, enfim, o seu modo de existir, demonstra o valor dessa carta narrativa como documento e obra literária. Referências: . Corografia brazílica, ou relação histórico-geográfica do reino do Brazil. Composta e dedicada a sua Magestade Fidelíssima pelo presbítero Manuel Aires de Casal. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, volume 1, pág. 12-34. . Cortesão, Jaime. A Carta de Pero Vaz de Caminha. 3 ed., Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1994, p. 191. . Seguro, Visconde de Porto (Francisco Adolfo de Varnhagen). Nota acerca de como não foi na Coroa Vermelha, na enseada de Santa Cruz, que Cabral primeiro desembarcou e em que fez dizer a primeira missa. In: Revista Trimensal do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil. Rio de Janeiro: Garnier, 1877. Vol. XL, Parte 2, p.12. . Abreu, João Capistrano de. O descobrimento do Brasil. Nota liminar de José Honório Rodrigues. 2 ed, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1976, p.167. . Dias, Carlos Malheiro. A semana de Vera Cruz. In: História da colonização portuguesa do Brasil. Porto: Litografia Nacional, 1923. Vol. 2, p. 77. . Pereira, Paulo Roberto. Os três únicos testemunhos do descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999. O texto da carta, assim como a nota informativa e as referências, basearam-se no livro - Os três únicos testemunhos do descobrimento do Brasil, de Paulo Roberto Pereira. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999. ( MCG)
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Departamento Nacional do Livro



15-mar-2006

domingo, 15 de julho de 2007

A SENTENÇA DE LAMPIÃO


SENTENÇA DE LAMPIÃO
(Extinção de punibilidade)

Ementa: Homicídios qualificados. Concurso de
pessoas e Concurso Material. Pronún
cia publicada há mais de 50 anos.
Prescrição.Extinção da punibilidade


Sentença


V I S T O S, etc.

O Ministério Público, com atribuições nesta Comarca, denunciou VIRGOLINO FERREIRA DA SILVA, de alcunha “Lampião”, Heleno de tal, de alcunha “Moreno”, Luiz Pedro, Félix Caboge, Antônio Sabiá, Jurema de Medeiros, Chumbinho, Chá Preto, Maçarico e Baraúna, como incursos nas penas do art. 294, § 1º, c/cos arts. 18. § 1º, e 66, § 1º, do Código Penal vigente na época, feito em trâmite pelo expediente da Secretaria desta Comarca, aduzindo, em síntese:

Em mês de maio de 1925, em dia de feira, no Povoado de São Caetano, deste Município, por volta das 10 horas, “Lampião” e seu bando (denunciados) assaltaram de surpresa o aludido Povoado. Os denunciados praticaram mortes e depredação, tendo sido vítimas fatais os Srs. Emiliano Martins, José Teotônio e Ângelo de tal.
Na época dos fatos delituosos descritos na denúncia, o Povoado de São Caetano pertencia ao Município de Flores, atualmente pertencente à Comarca de Betânia, neste Estado.
Requereu o recebimento da denúncia de fls. 02, sendo finalmente pronunciados os réus como incursos nas penas do art. 294, § 1º, combinado com os arts. 18, § 1°, e 66, § 1º, do Código Penal vigente na época. A denúncia foi subscrita pelo Dr. Severino Correia de Araújo, Promotor de Justiça desta Comarca naquela época.
O fato delituoso, narrado na peça inicial de fls. 02, ocorrera em maio de 1925, a denúncia foi proposta em 20 de fevereiro de 1928, tendo sido recebida no dia 22 de fevereiro de 1928. Nos autos de fls. 21/22 vem pronúncia, tendo a denúncia sido julgada procedente em relação aos denunciados VIRGOLINO FERREIRA DA SILVA, HELENO DE TAL, de alcunha “Moreno”, LUIZ PEDRO, FÉLIX CABOGE, ANTÔNIO SABIÁ e JUREMA DE MEDEIROS, e improcedente em relação aos réus Chumbinho, Chá Preto, Maçarico e Baraúna.
O Ministério Público apresentou parecer às fls. 26/28.
Conclusos os autos em data de hoje, passo à decisão.
É O RELATÓRIO.

De acordo com as disposições do Código Penal Brasileiro vigente, os crimes descritos na denúncia seriam hoje tipificados no art. 121, § 2º,. incisos III (crueldade) e IV (recurso que tornou impossível a defesa do ofendido), c/c arts. 29(concurso de pessoas) e 69 (concurso material).
A pronúncia foi publicada em 23 de julho de 1928, conforme certidão de fls. 22. A alusiva pronúncia é de punho do Dr. Humberto Gonçalves Tavares, juiz de Direito desta Comarca, na época.
Tenho que os crimes, que originaram a presente ação penal, foram praticados em uma época que faz parte da História do Nordeste, época em que se proliferou pelos Sertões Nordestinos o fenômeno do cangaço. Atualmente, o Sertão Pernambucano se atormenta coma crescente onda de criminalidade regional, onde assaltos a bancos, a empresas privadas e públicas, seqüestros, plantação e tráfico de maconha e homicídios, são uma constante na vida deste bravo povo. Nas duas últimas décadas grande extensão do Sertão de Pernambuco passou a ser nacionalmente conhecido como o polígono da maconha, no qual é largamente cultivada a droga cannabis sativa linné, conhecida por maconha, os homicídios passaram a fazer parte da rotina, imperando a lei do silêncio e a guerra entre as famílias.
Os crimes da atualidade tem uma grande dosagem de requinte; contudo, a perversidade destes assemelha-se à dos crimes praticados, há mais de 60 (sessenta) anos, pelo maior fora-da-lei que o Nordeste conheceu, VIRGOLINO FERREIRA DA SILVA, o “Lampião”, de fama internacional. Atualmente, os bandidos sertanejos cometem seus crimes, fazendo uso de armas de grosso calibre, agindo de forma organizada, ao contrário do passado, onde a arma mais usada era o bacamarte.
No Nordeste brasileiro, especialmente no Sertão de Pernambuco, as lutas de clãs tem sido uma constante desde os primórdios. O Vale do Pajeú, localizado no alto sertão pernambucano, enquadra-se bem nestas lutas de clãs, vez que, não só os conflitos de aldeias, como também os individuais, tem sido responsáveis por muitos homicídios. Os crimes do passado eram praticados através do bacamarte de pederneira, posteriormente o cruzeta, o papo amarelo, o fuzil, o punhal, a foice e a faca peixeira. Atualmente são praticados com o uso de armas modernas, em muitos dos casos de uso exclusivo do Governo, que chegam aos bandidos através de mãos criminosas.
Assim, o cangaço foi um fenômeno exclusivo do Nordeste, não nasceu por acaso, por intuito próprio dos homens, em sentir prazer em matar o seu semelhante, mas pela falta de uma sociedade que se vinculasse nos bons princípios da lei. Os cangaceiros retratavam-se armados na prática de roubos, homicídios, extorsões, dentre outros tipos penais. Mesclado por tamanha tirania, o sertanejo primitivo, conhecedor de seus parcos limites da ignorância, desvinculado da lei, não encontrando justiça para tamanha vilania, ou seja, para assegurar os seus pretensos direitos, passou a fazê-la com as próprias mãos, sendo juízo de suas causas. Entretanto, este sertanejo primitivo não podia legislar, tão pouco aplicar a lei ao caso concreto, faculdade permitida a nós Magistrados, revestidos das formalidades da lei. Estes homens rudes, ao invés de agirem legalmente pelos caminhos da lei, colocando suas pretensões para apreciação da Justiça, enveredaram pelo caminho da vingança, a qual causou uma série de tragédias, dentre estas a do réu VIRGOLINO FERREIRA DA SILVA.
Conclui-se, pois, se bem que em pequena intensidade, que esta prática, ainda hoje, persiste, mas os olhos da Justiça tem chegado a todos os recantos do Nordeste, e por que não dizer do País, sem medir dificuldades, para desfazê-la. Atualmente, com a magnânima eficiência da Justiça, é mais fácil para os homens chegarem a um perfeito julgamento dos seus casos sociais, coisa que não aconteceu na época da saga do cangaço.
Nesta terra sertaneja, localizada no Vale do Pajeú, do passado aos dias atuais, emboscar o inimigo, mesmo se tratando de desafeto poderoso, ou matá-lo de tocaia era e ainda é, para muitos, forma de conquistar o poder e retratar a valentia, não se levando em conta a inominável covardia, repudiada pela Justiça e pela sociedade. No passado era comum entre os inimigos avisar até mesmo o dia do acerto de contas. Atualmente estes acertos de contas perduram, através da covardia, traição e surpresa. No início do século, nos anos 20, o bacamarte, o fuzil, o punhal, o lombo dos cavalos e jegues eram as armas e os transportes mais utilizados pelos criminosos. Atualmente são usadas armas de grosso calibre, como fuzil AR-15, granadas e outras armas de uso exclusivo das forças militares, além de espingardas calibre 12 de repetição e revólveres 38, estando a sociedade a usufruir de tecnologia; veículos automotores não são mais novidades e substituiram o lombo dos animais.
VIRGOLINO FERREIRA DA SILVA, antes de formar o seu bando, aproximadamente em 1917 – 1918, fez parte do grupo do Sinhô Pereira, homem de grande coragem e sabedoria, integrante de uma das famílias mais tradicionais do Vale do Pajeú, neste Estado, amigo de infância de Lampião, sendo os inimigos deste, também inimigos comuns de Lampião, uma outra forte razão para que este fosse integrante do grupo daquele. O grupo do Sinhô Pereira era dotado de comando, tinha freio, jamais atacava quem não era inimigo.
Aproximadamente em 1922, com o afastamento espontâneo do Sinhô Pereira do cangaço, Lampião teve oportunidade de chefiar, pela primeira vez, um bando, tendo sido escolhido pelo antigo chefe, por ser dotado de coragem, sabedoria e audácia, bem como por ter dentre seus inimigos quase que a totalidade dos inimigos do Sinhô Pereira. Inicialmente, Lampião permaneceu como observador, tendo porém deixado os seus comandados agirem praticando uma onda de crimes na região.
Ao contrário do grupo a que pertenceu inicialmente, o grupo chefiado por ele não tinha freios, era detentor do desejo do mal. Teve em seu poder forças outras que o impulsionaram, dentre as quais a politicagem praticada por alguns coronéis de sua época, sendo por culpa daqueles que Lampião conseguiu, por 16 anos, reinar impunemente, tornando-se líder do cangaço e conseguindo suplantar a todos que o antecederam. Quando Lampião assumiu o comando do bando, deu a este um novo impulsionamento, direcionando-o para a prática de crimes, posto que, antes, o Sinhô Pereira disciplinava seu bando com severidade e quando assumido por Virgolino, passou esse bando a espalhar o terror por nove Estados nordestinos.
Em Pernambuco, as cidades de Flores, Triunfo e Vila Bela, atualmente Serra Talhada, terra natal de Lampião, e na vizinha Princesa Isabel, localizada no Sertão do Estado da Paraíba, cidade que divide seu território com esta comarca, os assaltos, os saques passaram a fazer parte da rotina de seus habitantes. Muitas vezes, estes se transformavam em tragédias, o de foram ceifadas vidas de muitos inocentes.
Lampião, apesar de não ter tido instrução, era dotado de arguta inteligência, homem muito observador, enxergava onde os olhos dos outros não conseguiam chegar, possuidor de rápido raciocínio, ágil, sendo capaz de traçar metas audaciosas, colocando-as em prática, com pleno êxito, em questão de minutos. Foi um grande empreendedor do terror, dado à prática de crimes, como que parecendo ter nascido para este fim. Ele não foi o único membro da família Ferreira a seguir os passos do cangaço, tinha consigo os irmãos Livínio, nascido em 7 de novembro de 1896, e Antônio, nascido em 15 de julho de 1895. Conta-se neste Sertão Pernambucano que Livínio morreu em 1925, no combate do Tenório, tendo Lampião cortado sua cabeça, para não dar gosto ao inimigo de saber que o havia eliminado
VIRGOLINO FERREIRA DA SILVA, o Lampião, durante 16 anos, reinou nos sertões do Nordeste, enveredando pelas caatingas, deixando por onde passava um rastro de perversidade e praticando tudo aquilo que podia aterrorizar a sociedade sertaneja. Conseguiu valentia através da violência, impôs o medo, a covardia, de modo torpe e vil, como forma de se impor em todo o Sertão Nordestino. Ele empreendeu uma onda nefasta de crimes ao longo de sua trajetória como cangaceiro, porém nem sempre conseguiu concretizar as suas metas, ou, ainda, seus planos não foram bem sucedidos. Tendo, às vezes, encontrado certa presença de espírito desfavorável, teve que recuar, posto que sua empreitada não havia sido recepcionada como o previra. Era um homem prudente, uma verdadeira serpente.
VIRGOLINO FERREIRA DA SILVA saiu da cidade de Serra Talhada, na época Vila Bela, localizada às margens do rio Pajeú, no Sertão de Pernambuco, para formar seu bando de cangaceiros, espalhando o terror por quase todo o Nordeste. É corrente a história de Virgolino, o maior cangaceiro do Brasil, um dos personagens mais autobiografados deste século, cantado em verso e prosa, fazendo parte do cenário cultural nacional, através das obras literárias, músicas, filmes e novelas, existentes sobre a história do cangaço. Quando se fala do cangaço, Virgolino é o seu maior personagem. Virgolino Ferreira da Silva, o Lampião, no Sertão de Pernambuco e em especial no Vale do Pajeú, é um misto de bandido e herói. Lampião nasceu no Sítio Passagem das Pedras, conhecido também por Ingazeira, localizado nas margens do riacho São Domingos, Município da antiga Vila Bela, atual Serra Talhada, no dia 7 de julho de 1897, filho de José Ferreira dos Santos e de Maria Sulena da Purificação, tendo sido registrado em 12 de agosto de 1900, conforme consta do livro nº 02, fls. 08, do Cartório de Registro Natural, Distrito de Tauapiranga, Serra Talhada (Pernambuco). Lampião, se vivo fosse, teria completado 100 anos em julho passado.
O cangaço proliferou em uma época onde o coronelismo imperava no interior do Nordeste, especialmente neste Sertão de Pernambuco. Lampião foi protegido por muitos poderosos inescrupulosos. Como os bandidos da atualidade, fazia uso de armas e munições de uso exclusivo do Governo. Conta-se nestes lados do sertão que, em 1926, na batalha de “Serra Grande”, localidade de Vila Bela, atual Serra Talhada, Lampião conseguir vencer mais de 300 homens da volante, sem sofrer baixas, tendo em seu bando aproximadamente 100 homens. Durante 16 anos o cangaço dominou o Sertão Nordestino, tendo sido Virgolino Ferreira, “O Lampião”, um dos seus maiores ativistas. Passando para a história como o Rei do Cangaço, como é popularmente conhecido no País, espalhou pelos sertões afora um grande contingente de “foras-da-lei”.
Conta-se, no Sertão Pernambucano e nas obras literárias, que Virgolino Ferreira da Silva recebeu a patente de Capitão das mãos do também conhecido Padre Cícero Romão, consagrado pelos nordestinos como o “Santo do Nordeste”. Conta-se que em certo dia, tendo Lampião chegado a Juazeiro, sertão do Ceará, mandou avisar ao Padre Cícero, que providenciara hospedagem para este e seu bando, tendo chamado Pedro de Albuquerque Uchoa, inspetor agrícola do Ministério da Agricultura, para que expedisse uma patente de Capitão para Virgolino. O Decreto foi expedido e assinado pelo funcionário, que, mesmo sabendo não ter validade, tratou de cumprir a ordem dada pelo Padre do Juazeiro. Lampião foi condecorado Capitão, porém esta patente nunca foi reconhecida pelas autoridades de sua época, ante a forma e por quem foi expedida.
Durante o cangaço nasceu o xaxado, dança bastante difundida por Lampião e seu bando, que aproveitavam os intervalos de suas badernas para soar a sanfona. A cabroeira divertia-se, dançando o xaxado.
Durante mais de uma década, o Sertão Nordestino, especialmente o pernambucano, nas margens dos rios Pajeú e São Francisco, foi palco de inúmeras batalhas, envolvendo os cangaceiros comandados por Virgolino e os grupos de soldados da volante. Atualmente esta mesma terra sertaneja é palco de outras batalhas, as batalhas de combate aos plantios e tráfico de maconha, aos assaltos, seqüestros, homicídios e outros crimes. O Sertão Pernambucano está povoado de plantações de maconha, de grupo de bandidos que insistem em permanecer no crime, mesmo diante da ação policial e judicial. A polícia vem enfrentando constantemente os plantadores de maconha, erradicando inúmeras plantações da droga, mesmo diante da precariedade das condições em que trabalha. As Polícias Federal, Civil e Militar vem conseguindo bons resultados. Cuido que ainda falta muito para que o crime seja totalmente erradicado nesta terra sertaneja.
A polícia de meio século atrás combatia os cangaceiros, usando as mesmas armas que estes usavam, em igualdade. Atualmente, o crime organizado é muito mais inescrupuloso, poderoso, superando as ações policiais. Anos após à morte de Lampião, teve fim o ciclo do cangaço; porém, o Sertão continua à espera de uma solução, para que seus habitantes possam exercer o seu direito de locomoção, que se encontra ameaçado, com a crescente criminalidade no Sertão, direito este previsto na lei maior,no art. 5º, inciso XV, que expressa: “É livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da Lei, nele entrar ou dele sair com seus bens”. Em algumas cidades do Sertão de Pernambuco a guerra entre famílias leva a população a se resguardar no interior de seus lares, só saindo à noite em caso de extrema necessidade. Ademais, hoje em dia, trafegar pelas rodovias nacionais, em Pernambuco, e em especial nas rodovias do Sertão, das 18 horas ao amanhecer é lançar-se à ação da bandidagem, é um verdadeiro risco de vida, pois os assaltos a veículos de cargas, particulares e coletivos, tornaram-se uma rotina.
As obras literárias que narram a saga do cangaço, a história de Virgolino Ferreira da Ssilva, mostram que na manhã do dia 8 de julho de 1938, uma quinta-feira, por volta das 4 horas da manhã, na localidade de Grota de Angicos, localizada às margens do rio São Francisco, o Velho Chico, que já serviu de cenário para muitos poemas, houve o ataque fatal. Do lado esquerdo do rio, fica o Estado de Alagoas, e do lado direito, o Estado de Sergipe, onde se localiza a Fazenda Angicos, situada no município sergipano de Porto da Folha. A Grota do Angico serviu de palco para a última batalha de Lampião, Rei do Cangaço, posto que, nesta, foram o Capitão Virgolino Ferreira e seu bando despertados por uma chuva de balas, deflagrada pelo grupo de soldados da volante chefiada pelo Capitão João Bezerra, do Segundo Batalhão de Polícia de Alagoas, com sede em Palmeira dos Índios (Alagoas). Nesta sombria manhã terminava o reinado de Lampião, o Rei do Cangaço. A história da morte do bandoleiro mais conhecido do País correu os quatro cantos do Nordeste, sendo notícia em todo o País. Uns receberam-na com satisfação; outros sentiram tristeza. Algumas obras narram que, juntamente com Lampião, foram mortos mais de 10 cangaceiros, dentre os quais: Luiz Pedro, Mergulhão, Cajarana, Tempestade, Elétrico, Quinta-Feira e Erundina, mulher do cangaceiro José Sereno, que escapou a tempo, além da amada do Rei do Cangaço, Maria Adelaide, conhecida por Maria Bonita.
Conta-se, ainda, que Maria Bonita teve sua cabeça decepada mesmo com vida. Onze cangaceiros mortos em Angico tiveram suas cabeças degoladas, sendo expostas por várias cidades alagoanas, como verdadeiros troféus macabros. Dentre estas cabeças, estavam as de Lampião e sua amante Maria Bonita.
Já se passaram mais de 60 anos da data da morte de Virgolino Ferreira da Silva; porém, a distância dada pelo tempo não selou a boca do povo, especialmente do sertanejo.
As histórias de espanto, sangrentas, que cercaram a lendária figura de Lampião, o maior fora-da-lei de que se tem notícia no Nordeste, ainda vivem. Os velhos de hoje repassam para os jovens as histórias ouvidas no passado, histórias dos combates que envolveram Lampião e os soldados das volantes, histórias dos massacres, das humilhações que Virgolino impunha aos seus inimigos, dos saques, das mortes, do terror praticado pelo bandoleiro
No vale do Pajeú, especialmente em Serra Talhada (Pernambuco), antiga Vila Bela, terra natal de Virgolino, e em Triunfo (Pernambuco), cidade turística, a história do cangaço e de Lampião se encontra viva, através dos grupos de xaxados e dos museus, onde jovens e estudiosos a divulgam e a mantém viva por meio da música, da dança, da arte e da literatura. A cidade de Serra Talhada está localizada no Vale do Pajeú, alto Sertão Pernambucano, cidade de clima quente, com aproximadamente 80 mil habitantes, berço de Lampião, conhecida como Capital do Xaxado. Serra Talhada de hoje é comarca de 2ª entrância, com três varas, 1ª e 2ª Vara Cível e Vara Criminal. Triunfo, cidade de clima frio, uma verdadeira Suíça Sertaneja, histórica, de velhos sobrados, comarca de 1ª entrância, com vara única, está a 1.010 metros de altitude.
O sertanejo é de índole ordeira e só em circunstâncias fora do comum muda de lado, passando para o lado criminoso. No passado, as questões atinentes à terra, honra de família e exacerbações políticas eram as mentoras dos homicídios; hoje, acrescido a estes motivos, o Sertão Pernambucano, especialmente no Vale do Pajeú e às margens do rio São Francisco, está povoado pelas plantações de maconha, popularmente chamadas, na região, de roças, aumentando deste modo o índice de crimes.
Temos no Código Penal, no art. 109, o instituto da Prescrição, que nada mais é que a perda do poder de punir do Estado, causada pelo decurso de tempo fixado em lei.
A Lei Penal, em seu art. 109, prevê que, antes de transitar em julgado a sentença, a prescrição é regulada pela pena máxima cominada ao crime. Sendo assim, o fato delituoso narrado na denúncia tem pena máxima in abstracto de 30 (trinta) anos, pelas diretrizes do Código Penal Brasileiro atual.
O Dr. EDUARDO LUIZ SILVA CAJUEIRO, Promotor de Justiça desta Comarca, em pronunciamento de fls. 26/28, requer a decretação da extinção da punibilidade pela prescrição.
A partir do momento em que se realiza o delito, surge para o Estado o interesse em punir. A lei fixa um prazo máximo, para que o Estado exerça a sua pretensão em punir, conforme a pena máxima cominada ao delito.
Com a prática de um delito, vem a punibilidade, que é o direito de se aplicar a sanção correspondente a este. O Estado, enquanto titular do direito de punir, solicita ao Poder Judiciário que se torne concreta a aplicação do direito ao fato. Desta forma, é estabelecida a relação jurídico-punitiva, que irá dirimir o conflito de interesses entre o direito de aplicação da sanção pelo Estado. Da data da prática do fato delituoso até à aplicação da sanção, este prazo está submetido a interrupção e suspensão, e se não for aplicada a sanção no prazo prefixado na lei, ocorrerá a prescrição da pretensão punitiva, comumente chamada de prescrição da ação penal.
O fundamento da prescrição repousa na circunstância de que a ação temporal faz surgir o interesse do Estado, não só em apurar a infração penal, também como na sua pretensão de executar a sanção imposta.
Para o mestre FREDERICO MARQUES, a prescrição penal é a perda do direito de punir pelo não-uso da pretensão punitiva, durante certo espaço de tempo (cf. Curso, cit., 1956, p. 412)
A lei concede ao Estado o direito de punir, quando do cometimento de um delito, impondo ao infrator a sanção descrita no tipo. Existem, contudo, na lei, situações que impedem a persecutio criminis, ou tornando sem efeito a condenação aplicada. Dentre as causas que encerram o poder do Estado em aplicar a sanção descrita no tipo legal do delito praticado, há causas de extinção geral, também chamadas de causas comuns, podendo estas ocorrer em todos os tipos penais, estando enquadradas nestas causas a morte do agente, a prescrição, dentre outras. Existem, ainda, as causas denominadas causas especiais, que estão relacionadas a determinados delitos, a exemplo a retratação do agente, nos crimes contra a honra, o casamento do agente com a ofendida em determinados delitos contra os costumes, etc. Ocorrendo a prescrição, a pretensão do Estado é extinta diretamente, sendo, portanto, atingido o direito de ação por conseqüência.
A prescrição da pretensão punitiva extingue a punibilidade. O Estado perde o direito de invocar ao Poder Judiciário que este aplique o Direito Penal objetivo ao caso concreto, posto para julgamento.
O art. 107 do Código Penal enumera, em seus nove incisos, as principais causas de extinção da punibilidade, porém não é taxativo, existem causas outras, não enumeradas no aludido dispositivo. NELSON HUNGRIA (apud BASILEU GARCIA, Instituições, cit. 2, p. 654) lembra a restituição in integrum, no caso de subtração de menores (C.P., art. 249, § 2º). Devemos analisar ainda o ressarcimento no peculato culposo (C.P,.art. 312, § 3º, 1ª parte), bem como a morte da vítima, nos delitos de induzimento a erro essencial e alteração de impedimento (C.P., art. 236). Ademais, existem as causas extintivas condicionadas, isto é, a suspensão condicional da pena e o livramento condicional.
A prescrição do jus persequendi in judicio ocorre antes da prolação da sentença definitiva, enquanto a prescrição do jus puniendi dá-se após o trânsito em julgado do decreto condenatório, vez que, com o trânsito em julgado da sentença condenatória, surge o título penal, devendo, porém, este ser executado dentro de um certo espaço de tempo, variando de acordo com a sanção aplicada, e, se não executado dentro deste lapso temporal, perde o seu valor executório, prescrevendo.
A punibilidade também se extingue pela morte do agente, conforme o art. 107, I. As obras literárias dão conta de que VIRGOLINO FERREIRA DA SILVA foi assassinado no dia 28 de julho de 1938, na Grota de Angicos (Sergipe), porém nos autos presentes não consta Certidão de Óbito do réu, tão pouco dos demais pronunciados, sendo um dos requisitos exigidos para decretação da punibilidade pela morte do agente que conste nos autos Certidão de Óbito do agente, no original. Desta forma, tenho que existe a extinção da punibilidade pela prescrição, e não pela morte do agente, por faltar-lhe um dos requisitos legais, que é a juntada aos autos de Certidões de Óbito dos réus.
A extinção da punibilidade é o freio imposto pela lei ao Estado, quando não exerce o seu direito em determinado espaço de tempo, de acordo com a sanção a ser aplicada ao delito, desde que ocorra determinada causa, estando estas causas relacionadas no art. 107 do Código Penal.
A pronúncia é uma das causas de interrupção da prescrição, segundo as diretrizes do art. 117, II, do Código Penal. Nos autos presentes foi a pronúncia publicada em 25 de julho de 1928. Portanto, decorrido mais de meio século, os réus não foram julgados pelo Egrégio Tribunal do Júri desta Comarca em tempo hábil.
Os crimes descritos na denúncia se encontram prescritos há mais de meio século, não restando outra alternativa a este Magistrado senão decretar a prescrição e conseqüentemente, a extinção da punibilidade, uma vez que o instituto da prescrição é de ordem pública, podendo ser decretada em qualquer fase do inquérito ou da ação penal, de ofício ou a requerimento das partes, pelo juízo da instância inferior ou da superior, quando reconhecida, dependendo da competência. Com a declaração da prescrição, extingue-se a punibilidade, sendo defeso analisar-se o mérito da causa.
Nos autos presentes existe um decurso de mais de meio século da data da publicação da pronúncia até a data atual. Portanto, só me resta uma alternativa: declarar a extinção da punibilidade pela prescrição.

D_E_C_I_D_O,

Ante o exposto, pelo contido nos autos, com amparo no art. 107, IV, c/c art. 109, I, do Código Penal Brasileiro, DECRETO POR SENTENÇA A EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE, pela prescrição, da pretensão punitiva do Estado, em relação aos réus VIRGOLINO FERREIRA DA SILVA, de alcunha "LAMPIÃO", HELENO DE TAL, de alcunha "Moreno", LUIZ PEDRO, FELIX CABOGE, ANTÔNIO SABIÁ e JUREMA DE MEDEIROS, qualificados na denúncia.
Cumpridas as formalidades legais, com as cautelas da lei, arquive-se.
Sem custas.
Publique-se.
Registre-se.
Intime-se.

Flores-PE, 17 de outubro de 1997

Bel. Clóvis Silva Mendes
Juiz de Direito da 1ªa Vara Cível da
Comarca de Serra Talhada,
no exercício cumulativo da Comarca de
Flores

(in Revista "In Verbis", do Instituto dos Magistrados do Brasil (IMB), nº 26, págs. 40 e segs)

domingo, 8 de julho de 2007

HABEAS PINHO

HABEAS PINHO


Em Campina Grande, na Paraíba, em 1955 um grupo de boêmios fazia serenata numa madrugada do mês de junho, quando chegou a Polícia, que, nos termos do que dispõem o art. 6º, inc. II, e o art. 11, tudo do Código de Processo Penal, apreendeu o violão, um legítimo “pinho”.
Decepcionado, o grupo recorreu aos serviços do advogado Dr. RONALDO CUNHA LIMA, então recentemente saído da Faculdade, poeta e que também apreciava uma baa seresta.
Cônscio cumpridor de seu dever, o dr. Ronaldo foi à presença do Juiz Artur Maia Moura, do Tribunal de Justiça da Paraíba, que lhe sugeriu impetrar, em versos, o remédio legal, no caso, à época, o Pedido de Restituição de Coisa Apreendida (art. 118 e segs. do CPP).
O dr. Ronaldo formulou o respectivo petitório, que ficou conhecido como “Habeas Pinho”, e enfeita as paredes de muitos advogados e bares em praias do nordeste.
Mais tarde, o dr. Ronaldo foi eleito deputado estadual, prefeito de Campina Grande (cassado pela Revolução), senador, Governador do Estado e deputado federal.
Veja, a seguir, a famosa petição do tal “Habeas Pinho”.

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“Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito da 2ª Vara desta Comarca
O instrumento do crime que se arrola
Neste processo de contravenção
Não é faca, revolver, nem pistola
É simplesmente, doutor, um violão.
Um violão, doutor, que na verdade
Não matou, nem feriu um cidadão
Feriu, sim, a sensibilidade
De quem o ouviu vibrar na solidão

O violão é sempre uma ternura
Um instrumento de amor e de saudade
O crime a ele nunca se mistura
Inexiste entre eles afinidade

O violão é próprio dos cantores
Dos menestréis de alma enternecida,
Que cantam as mágoas que povoam a vida
E sufocam as suas próprias dores

O violão é música e é canção,
É sentimento, é vida, é alegria
É pureza, é néctar que extasia
É adorno espiritual do coração

Seu viver, como o nosso, é transitório
Mas seu destino, não, se perpetua
Ele nasceu para cantar na rua
E não p’ra ser arquivo de cartório

Mande soltá-lo, pelo amor da noite
Que se sente vazia em suas horas
Para que volte a sentir o terno açoite
De suas cordas leves e sonoras

Libere o violão, doutor Juiz
Em nome da Justiça e do Direito
É crime, por ventura, o infeliz
Cantar as mágoas que lhe enchem o peito ?

Será crime, e afinal, será pecado
Será delito de tãos vis horrores
Perambular na rua um desgraçado
Derramando na praça as suas dores ?

É o apelo que aqui lhe dirigimos
Na certeza de seu acolhimento
Juntada desta aos autos nós pedimos
E pedimos, também, deferimento”

Para não ficar atrás, o Juiz deu seu despacho assim:

“ Para que eu não carregue
Remorsos no coração
Determino que se entregue
A seu dono o violão”


(Fonte:
www.espacovital.com.br/asmaisnovas08042003b.htm
Revista “Togas e Becas”
Revista “Voz Ativa”, Junho/98

quinta-feira, 5 de julho de 2007

A SENTENÇA DE CRISTO


A SENTENÇA DE CRISTO


“Neste ano XIX do Reinado de Tibério, Imperador Romano de todo o mundo e Monarcha Invencível, de 24 da Ilíada, 4178 da criação do mundo, segundo os hebreus, 73 da Progente do Império Romano e 1207 da Independência da Babilônia, sendo Governador da Judéia Quintino Sérvio, Regente e Governador de Jerusalém o Gratíssimo Presidente Pôncio Pilatos, Regente da Baixa-Galiléia, Herodes Antipa, e Consulês Romanos da Cidade de Jerusalém Quintino Cornélio Sublime e Sexto Pompílio Rusto, hoje dia 25 do mês de março.
Eu, Pôncio Pilatos. Presidente do Império Romano, neste meu Palácio e residência, julgo, condeno e sentencio a morte a Jesus, chamado pelo povo Christo Nazareno, galileu de origem e homem sedicioso, inimigo da Lei Mozaica e do grande Imperador Tibério Cézar. Por meio da presente, determino e ordeno que se lhe dê morte na cruz, prendendo a ela com cravos segundo se procede com os réus, porque havendo reunido diversas vezes numerosas pessoas ricas e pobres, promoveu inúmeros tumultos em toda Judéia, fez-se chamar Filho de Deus, e Rei de Israel, ameaçou de ruína a Jerusalém e ao Santo Templo, negou a Cezar e teve a ousadia de entrar em Jerusalém e no Templo acompanhado triunfalmente pelas multidões. Ordeno, além disso, que o levem pela cidade agrilhoado e açoitado; que o vistam de púrpura: que lhe ponham uma coroa de espinhos e o façam carregar sua cruz aos ombros para que sirva de exemplo aos malfeitores. Ordeno, também, que com ele sejam levados ao patíbulo, dois ladrões e homicidas e que o fazendo sair pela porta sagrada, o conduzam ao Monte da Justiça, o Calvário, onde o devem crucificar; que uma vez morto, deixem o seu corpo exposto como escarmento aos revoltosos, colocado sobre a cruz, em três línguas – hebraica, grega e judia – esta inscrição :Jesus Nazareno Rei dos Judeus. Ordeno, finalmente, que ninguém, qualquer que seja o seu estado ou hierarquia se atreva a impedir. Que esta sentença, por mim ditada, se execute com todo o rigor que prescrevem as leis romanas e hebraáicas. Quem tal ousar será acusado de rebeldia ao Império Romano e sofrerá as penas respectivas.

Testemunhas da sentença:- Pelas doze tribos de Israel, Rabbain Daniel, Rabbain Joannin, Boncar, Barbassu, Libi e Peculani
Pelos Phariseus: Rubia Simeão, Ranol, Rabbani, Mondoan e Buncorfosi.
Pelos Hebreus: Nitaude”

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Nota: Esta sentença se encontra no Museu de Espanha.
E foi publicada na edição de 24/03/78 do jornal “A Província
do Pará”

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Comentários de RUY BARBOSA:

“No julgamento instituído contra Jesus, desde a prisão, uma hora talvez antes da meia-noite de quinta feira, tudo quanto se fez até ao primeiro alvorecer da sexta-feira subseqüente, foi tumultuário, extrajudicial, e atentatório dos preceitos hebraicos. A terceira fase, a inquirição perante o sinedrim, foi o primeiro simulacro de forma judicial, o primeiro ato judicatório, que apresentou alguma aparência de legalidade, porque ao menos se praticou de dia. Desde então, por um exemplo que desafia a eternidade, recebeu a maior das consagrações o dogma jurídico, tão facilmente violado pelos despotismos, que faz da santidade das formas a garantia essencial da santidade do direito.
O próprio Cristo delas não quis prescindir. Sem autoridade judicial o interroga Annás, transgredindo as regras assim na competência, como na maneira de inquirir; e a resignação de Jesus ao martírio não se resigna a justificar-se fora da lei: “Tenho falado publicamente ao mundo. Sempre ensinei na sinagoga e no templo, a que afluem todos os judeus, e nunca disse nada às ocultas.
Por que me interrogas ? Inquire dos que ouviam o que lhes falei: esses sabem o que eu lhes houver dito”. Era o apelo às instituições hebraicas, que não admitiam tribunais singulares, nem testemunhas singulares. O acusado tinha jus ao julgamento coletivo, e sem pluralidade nos depoimentos criminadores, não podia haver condenação. O apostolado de Jesus era ao povo. Se a sua prédica incorria em crime, deviam pulular os testemunhos diretos. Esse era o terreno jurídico. Mas, porque o filho de Deus chamou a eles os seus juízes, logo o esbofetearam. Era insolência responder assim ao pontífice. Sic respondes pontifici ? Sim, revidou Cristo, firmando-se no ponto de vista legal; “se mal falei, traze o testemunho do mal; se bem, por que me bates ?
Annás, desorientado, remete o preso a Caifás. Este era o sumo sacerdote do ano. Mas, ainda assim, não tinha a jurisdição, que era privativa do conselho supremo. Perante este, já muito antes descobrira o genro de Annás a sua perversidade política, aconselhando a morte de Jesus, para salvar a nação. Cabe-lhe agora levar a sua própria malignidade, “cujo resultado foi a perdição do povo, que ele figurava pensou”
A ilegalidade do julgamento noturno, que o direito judaico não admitia nem nos litígios civis, agrava-se então com o escândalo das testemunhas faltas, aliciadas pelo próprio juiz, que, na jurisprudência daquele povo, era especialmente instituído como o primeiro protetor do réu. Mas, por mais falsos testemunhos que promovessem lhes não acharam a culpa que buscavam. Jesus calava, Jesus autem tacebat. Vão perder os juízes prevaricadores a segunda partida, quando a astúcia do sumo sacerdote lhes sugere o meio de abrir os lábios divinos do acusado. Adjura-o Caifás, em nome de Deus vivo, a cuja invocação o filho não podia resistir. E diante da verdade, provocada, intimada, obrigada a se confessar, aquele que a não renegara vê-se declarar culpado de crime capital: Reus est mortis. “Blasfemou ! Que necessidade temos mais de testemunhas ? Ouvistes a blasfêmia”. Ao que clamaram os circunstantes: “É réu de morte”.
Repontava a manhã, quando à sua primeira claridade se congrega o sinedrim. Era o plenário que se ia celebrar. Reunira-se o conselho inteiro. In universo concilio, diz Marcos. Deste modo se dava a primeira satisfação às garantias judiciais. Com o raiar do dia se observava a condição da publicidade. Com a deliberação da assembléia judicial, o requisito da competência. Era essa a ocasião jurídica. Esses eram os juízes legais. Mas juízes,que tinham comprado testemunhas contra o réu, não podiam representar senão uma infame hipocrisia da justiça. Estavam mancomunados para condenar, deixando ao mundo o exemplo, tantas vezes depois imitado até hoje, desses tribunais que se conchavam de vésperas nas trevas, para simular mais tarde, na assentada pública, a figura oficial do julgamento.
Saía Cristo, pois, naturalmente condenado pela terceira vez. Mas o sinedrim não tinha o jus sanguinis, não podia pronunciar a pena de morte. Era uma espécie de júri, cujo veredictum, porém, antes opinião jurídica do que julgado, não obrigava os juízes romanos. Pilatos estava, portanto, de mãos livre, para condenar ou absolver. “Que acusação trazeis contra esse homem ?”. Assim fala por sua boca a justiça do povo, cuja sabedoria jurídica ainda hoje rege a terra civilizada. “Se não fosse um malfeitor, não t’o teríamos trazido”, foi a insolente resposta dos algozes togados. Pilatos, não querendo ser executor num processo de que não conhecera, pretende evitar a dificuldade, entregando-lhes a vítima: “Tomai-o, julgai-o segundo a vossa lei”. Mas, replicam os judeus, bem sabes que “não nos é lícito dar a morte a ninguém”. O fim é a morte, e sem a morte não se contenta a depravada justiça dos perseguidores.
Aqui já o libelo se trocou. Não é mais de blasfêmia contra a lei sagrada que se trata, sendo de atentado contra a lei política. Jesus já não é o impostor que se inculca filho de Deus; é o conspirador, que se coroa rei da Judéia. A resposta de Cristo frustra, ainda uma vez, porém, a manha dos caluniadores. Seu reino não era deste mundo. Não ameaçava, pois, a segurança das instituições nacionais, nem a estabilidade da conquista romana. “Ao mundo vim”, diz ele, “para dar testemunho da verdade. Todo aquele que for da verdade há de escutar a minha voz”. A verdade ? “que é a verdade ?” pergunta, definindo-se, o cinismo de Pilatos. Não cria na verdade; mas a da inocência de Cristo penetrava irresistivelmente até o fundo sinistro dessas almas, onde reina o poder absoluto das trevas. “Não acho delito a este homem”, disse o procurador romano, saindo outra vez ao meio dos judeus.
Devia estar salvo o inocente. Não estava. A opinião pública faz questão de sua vítima. Jesus tinha agitado o povo, não ali só, no território de Pilatos, mas desde a Galiléia. Ora, acontecia achar-se presente em Jerusalém o tetraca da Galiléis, Herodes Antipas, com quem estava de relações cortadas o governador da Judéia. Excelente ocasião, para Pilatos, de lhe reaver a amizade, pondo-se, ao mesmo tempo, de boa avença com a multidão inflada pelos príncipes dos sacerdotes. Galiléia era o forum originis do Nazareno. Pilatos envia o réu a Herodes, lisongeando-lhe com essa homenagem à vaidade. Desde aquele dia um e outro se fizeram amigos, de inimigos que eram. Et facti sunt amici Herodes et Pilatos in ipsa die; nam antea inimici erant ad invencem. Assim se reconciliavam os tiranos sobre os despojos da justiça.
Mas, Herodes também não encontra por onde condenar a Jesus, e o mártir volta sem sentença de Herodes a Pilatos, que reitera ao povo o testemunho da intemerata pureza do justo. Era a terceira vez que a magistratura romana a proclamava. Nullum causam invenio in homine ipso ex his, in quibus eum accusatis. O clamor da turba recrudesce. Mas Pilatos não se desdiz. De sua boca irrompe a quarta defesa de Jesus: “Que mal fez ele ? Quid enim mali fecit iste ?Fsdfsd Cresce o conflito, acastelam-se as ondas populares. Então o procônsul lhes pergunta ainda: “Crucificareis o vosso rei ?” A resposta da multidão em grita foi o raio, que desarmou as evasivas de Pilatos: “Não conhecemos outro rei, senão César”. A esta palavra, o espectro de Tibério se ergueu no fundo da alma do governador da província romana. O monstro de Caprea, traído, consumido pela febre, crivado de úlceras, gafado de lepra, entretinha em atrocidades os seus últimos dias. Traí-lo era perder-se. Incorrer perante ele na simples suspeita de infidelidade era morrer. O escravo de César, apavorado, cedeu, lavando as mãos em presença do povo: ? “Sou inocente do sangue deste justo”.
E entregou-o aos crucificadores. Eis como procede a justiça, que se não compromete. A história premiou dignamente esse modelo de suprema covardia na justiça. Foi justamente sobre a cabeça do pusilânime que recaiu antes de tudo em perpétua infâmia o sangue do justo.
De Annás a Herodes o julgamento de Cristo é o espelho de todas as deserções da justiça, corrompida pelas facções, pelos demagogos e pelos governos. A sua fraqueza, a sua inconsciência, a sua perversão moral crucificaram o Salvador, e continuam a crucificá-lo, ainda hoje, nos impérios e nas repúblicas, de cada vez que um tribunal sofisma, tergiversa, recua, abdica. Foi como agitador do povo e subversor das instituições que se imolou Jesus. E, de cada vez que há precisão de sacrificar um amigo do direito, um advogado da verdade, um protetor dos indefesos, um apóstolo de idéias generosas, um confessor da lei, um educador do povo, é esse, a ordem pública, o pretexto, que renasce, para exculpar as transações dos juízes tíbios com os interesses do poder. Todos esses acreditam, como Pôncio, salvar-se, lavando as mãos do sangue que vão derramar, do atentado que vão cometer. Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de Estado, interesse supremo, como quer que te chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos ! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde”.
Mas, não ficou aí - sabe-se - o desrespeito ao salutar princípio do “Deuteronômio”, pois a verdade é que, através dos tempos, aqui e alhures, os simulacros de defesa e julgamentos, como aqueles que, recentemente, encheram de pavor e revolta a população cubana, em face do “paredão”.
(Comentários transcritos pelo criminalista SERRANO NEVES, in “Tática e Técnica da Defesa Criminal”, J. OZON Editor, 1962, págs. 23 e segs)

sábado, 30 de junho de 2007

A LEI PENAL É UM SISTEMA FECHADO








A LEI PENAL É UM SISTEMA FECHADO

(Despacho em processo)





Proc. Nº 24603-A
Irineu Gomes Pereira



Segundo o contido nos autos, Irene Porto Ferreira adquiriu em Manaus (AM) um motor de popa de fabricação estrangeira, tendo de lá saído com o mesmo – “sem o pagamento dos tributos devidos, e, portanto, sem autorização das autoridades competentes” (fls. 9) – levando-o para Itaituba (PA), sendo ali por ela entregue ao Recorrido, que o instalou em uma pequena embarcação de sua propriedade (“voadeira”), na qual foi assim encontrado por Agentes de Polícia Federal, que o retiraram e o apreenderam.
Com base em tais fatos, o ilustre representante do Ministério Público ofereceu denúncia contra ambos, irrogando à primeira a prática de crime tipificado no art. 39 do Dec. Lei nº 288, de 28/2/67 c/c alínea b do § 1º do art. 334 do Código Penal, e atribuindo ao segundo (ora Recorrido) a de ilícito previsto na alínea d do prefalado dispositivo da lei penal substantiva, em relação a quem afirmou que “passou a utilizá-lo no transporte de pessoas e coisas, na travessia Itaituba/Miritituba, utilizando, portanto, no exercício de atividade comercial, mercadoria de procedência estrangeira que sabia ser produto de clandestina introdução no território paraense, retirada que foi da Zona Franca de Manaus, o que corresponde a introdução clandestina no território nacional”.
Realmente, o fato imputado a Irene Porto Ferreira caracteriza, em tese, o crime pelo qual foi ela denunciada, daí porque a promoção veio a ser recebida.
No que diz respeito a Irineu Gomes Ferreira, porém, a denúncia não tinha condição para também o ser, motivo pelo qual a rejeitei quanto ao mesmo, com o que se não conformou o custos legis, que através do presente recurso parcial visa à reforma da correspondente decisão, sobre cujas razões ora passo a tecer as presentes considerações.
Data venia, estou em que o parquet incorreu em manifesto equívoco, ao imputar ao Recorrido a acusação da prática de crime (pela circunstância de utilizar ele o motor de popa) à afirmação de que “sabia ser produto de clandestina introdução no território paraense, retirada que foi da Zona Franca de Manaus, o que corresponde a introdução clandestina no território nacional, e, assim, quem utiliza mercadoria naquelas condições, no exercício de atividade comercial, pratica o crime previsto no art. 334, § 1º, d, do Código Penal” (fls. 5).
Em primeiro lugar, o crime tipificado no art. 39 do Dec. Lei nº 288, de 28/2/67, - à parte a defeituosa redação de que ‘Será considerado contrabando ...” – não tem a ver com “introdução clandestina”, etc, porquanto inclusive a isso não aludiu, como ao revés o fez a alínea d do § 1º do art. 334 do estatuto penal.
Em segundo lugar, urge ser rechaçado o generalizado e errôneo entendimento de que a ZFM é considerada território estrangeiro, mais precisamente para que se tenha como mercadoria procedente de outro país, incondicionalmente, toda a que dali seja proveniente. Certo é que tal porção do solo pátrio, por mera ficção, tem extraterritorialidade em relação ao resto do Brasil. Mas essa extraterritorialidade é apenas para efeitos fiscais, e não para fins penais. Quando o correlato dispositivo se refere a importação, tem-se como pressuposto a entrada de mercadoria, no Brasil, vinda do Exterior propriamente dito, não da área do nosso rincão equiparado (somente para efeitos fiscais) a território estrangeiro. Com efeito, as disposições de direito penal são interpretadas restritamente, por isso que não há crime que não corresponda a uma figura típica. No dizer de NELSON HUNGRIA, “A lei penal é, assim, um sistema fechado: ainda que se apresente omissa ou lacunosa, não pode ser suprida pelo arbítrio judicial, ou pelos “princípios gerais do direito”, ou pelo costume” (in Comentários ao Código Penal, Forense, 3ª ed, 1955, Vol. I, Tomo I, nº 1, pág. 11). Daí doutrinar o magistral CARLOS MAXIMILIANO que “Não se permite estendê-la, por analogia ou paridade, para qualificar faltas reprimíveis, ou lhes aplicar penas; não se conclui, por indução, de uma espécie criminal estabelecida para outra não expressa, embora ao juiz pareça ocorrer na segunda hipótese a mesma razão de punir verificada na primeira” (in Hermenêutica e Aplicação do Direito, Freitas Bastos, 6ª ed, 1957, nº 387, pág. 397). E arremata: “estritamente se interpretam as disposições que restringem a liberdade humana, ou afetam a propriedade” (idem, pág. 399).
A seu turno, JOSÉ FREDERICO MARQUES pontifica: “Quando um fato da vida cotidiana apresenta certos aspectos que parecem torná-lo subsumível em um tipo legal,mas que devidamente analisado se mostra não enquadrável na descrição da figura legal, diz-se que há atipicidade específica”(in Tratado de Direito Penal, Saraiva, 2ª ed, 1965, Vol. II, § 63, nº 3, pág. 79).
Assim, sabendo-se que “em direito penal não se pode fazer interpretação extensiva ou aplicação analógica” (ac. De 160680, da 1ª Turma do antigo TFR, no HC nº 4.739-CE, Min. Washington Bolívar de Brito, in DJU de 181280, pág. 10838), e tendo em vista que, se a norma legal incriminadora não previu expressamente a equiparação da extraterritorialidade fiscal à extraterritorialidade penal (e nem possibilitou que tal fosse inferido), - excluída, portanto, a consideração de que minus dixit quam voluit, - claro está que o intérprete não pode fazê-lo, relevante a circunstância de que, se dúvida houvesse,seria de toda conveniência o acatamento à regra do odiosa restringenda, favorabilia amplianda.
Quanto à preocupação do Recorrente, de que “a decisão recorrida constitui um perigoso precedente, pois de acordo com a linha seguida pelo ... juízo a quo, toda mercadoria retirada da Zona Franca de Manaus poderá ser comercializada em outros pontos do território nacional, sem que isso constitua crime” (fls. 5/6), tenha-se em conta que sobre o assunto já se manifestou o E. Tribunal Federal de Recursos, como se pode ver, verbi gratia, noHC nº 4.825-DF, in DJU de 271180/10050, e in EJTFR 17/25) e igualmente em casos análogos o fez o próprio dominus litis, inclusive no Processonº 27782.
Na verdade, - e apesar de haver afirmado que o Recorrido “sabia ser produto de introdução clandestina” (alínea c do § 1º do art.334 do CP, - tem-se que o fiscal da lei o denunciou como incurso nos termos da alínea d, à consideração de que o mesmo “passou a utilizá-lo no transporte de pessoas e coisas, na travessia Itaituba/Miritituba, utilizandoooo, portanto, no exercício de artividade comercial, mercadoria de procedência estrangeira ....”. Mas, ainda que assim seja, a denúncia contra o Recorrido não poderia realmente ser recebida, porque o correspondente crime só se configura, a par da concorrência dos demais elementos, se atuar o agente “no exercício de atividade comercial ou industrial”, e in hoc specie a instalação do motor de popa em uma pequena embarcação não caracteriza o alegado “exercício de atividade comercial” (fls. 9). É que, ao se referir àquela circunstância, teve em mira o legislador apenas o destino a ser dado à mercadoria, ou seja, a sua venda ou o seu emprego com fins industriais. Tanto é verdade que o sentido daquela expressão diz respeito à destinação, que a jurisprudência tem admitido essa ocorrência mesmo quando não se tenha positivado aquela circunstância, bastando que a quantidade de mercadoria denote a finalidade comercial, como exempli gratia expendido na seguinte ementa: !Contrabando. O fato de ocultar mercadoria estrangeira, em quantidade denotadora de sua destinação comercial, concretiza o crime de contrabando” (ac. Do TFR,na A.Crim. nº 1.427-PA, Rel. Min. Moacir Catunda, decisão unânime, in DJU 030270/247). E este outro aresto é ainda mais incisivo: “Para sua configuração, necessário que as mercadorias sejam destinadas ao comércio! (ac. De 040974, da 3ª Turma do TFR, na Ap.Crim. nº 2.279-MT, Rel. Min. Rondon Magalhães, in DJU 051175/8149). E, neste passo, vem bem a pelo este ensinamento do emérito NELSON HUNGRIA: “Exercício de atividade comercial não quer dizer senão exercício profissional do comércio, por conta própria ou de outrem” (in Comentários ao Código Penal,Forense, 2ª ed, 1958, Vol. VII, nº 99, pág. 273).
In casu, o motor estava devidamente instalado na embarcação de propriedade do Recorrido, e, assim, era empregado em uso próprio, não se destinando a revenda.
Diante de todo o exposto, tem-se que a denúncia oferecida contra Irineu Gomes Ferreira realmente não poderia ser recebida, pelo que ora mantenho a decisão recorrida.
Intime-se.
Belém, 031187










Segue...














Algum tempo depois reconsiderei o entendimento de que o “exercício de atividade comercial ou industrial” poderia ser simplesmente deduzido, porque cheguei à conclusão de que, no caso,o tal exercício haveria de ser efetivo, e não deduzido, conforme se vê pelo contido no seguinte trecho:



















No exercício de atividade comercial ou industrial
TRF – 3 ª Turma
Ap. Crim. Nº 93.01.19631-0/MG

“........2. Os ilícitos previstos nas alíneas c e d do § 1º do art.
334 do Código Penal só se caracterizam com o efetivo exer
cício de atividade comercial ou industrial, não sendo sufici
ente a intenção ou a dedução de que aquela atividade possa
vir a ocorrer futuramente, pois a destinação não constitui ele
mento do tipo”

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.......De outra sorte, nem seria o caso de desclassificar (como autorizado pelo art. 383 do CPP) para alguma das figuras previstas nas alíneas c e d do § 1º do mencionado art. 334 do Cód. Penal, porque em todas elas há o pressuposto de que o crime só existirá quando a pessoa age – como lá expressado – “no exercício de atividade comercial ou industrial”, e em tal circunstância não se encontrava a apelante quando foi abordada pelos policiais, e nem o fizera anteriormente, pouco importando que se tenha dito ser a intenção dela posteriormente comerciar as mercadorias apreendidas, em primeiro lugar porque a simples intenção (cogitatio) não é suficiente para justificar penalização (pensero non paga gabello, como dizem os italianos) e, em segundo lugar, porque apenas se a apelante viesse a efetivamente empregar as mercadorias em atividade comercial ou industrial, e somente quando o fizesse, é que se caracterizaria algum dos crimes previstos nas referidas alíneas, e tudo isso até porque, falando os dispositivos em “no exercício de atividade comercial ....” (tempo presente0, e não em “para exercício ...(futuro), é de ser rechaçada qualquer consideração, como equivocadamente tem sido amiúde afirmada,a punição pelo fato da “destinação”, haja vista que não é isso o que está previsto na figura penal, de todo abominável na espécie o emprego da analogia ou a interpretação extensiva contra o réu.


Brasília/DF, 25/10/93